Os Projectos
Confissão de dívida
Mario de Carvalho

Raramente leio, como costumam dizer, de um fôlego. Suspendo, interrompo, entrecruzo. Um livro que me recordo de ter lido sem parar, depois que o comecei a folhear para não o largar antes do fim, foi justamente ”A Cor dos Dias”. Reencontrava naquele prazer sereno de contar, na palavra tranquila e fina de Alçada Baptista, um mundo simultaneamente tão contíguo e tão distante. Contíguo por dizer respeito, directamente, a figuras que eu ainda conheci e à atmosfera de uma Lisboa triste e acinzentada, bem familiar, em que cintilavam aqui e além os brilhos das várias resistências, como reflexos de estrelas num pântano. Distante por tratar também de preocupações, de ambientes, percalços e episódios próprios dos meios católicos, muito afastados da minha educação e formação cívicas, a rasar uma linha entre o jacobino e o comunista.

É esta uma boa oportunidade para expressar, talvez com surpresa dos destinatários, a minha enorme admiração por aqueles que, não tendo feito opções que obrigavam por natureza à resistência, marcaram esses tempos, num exercício quotidiano de brio cívico, numa afirmação pessoal de grandes qualidades humanas e num testemunho militante dos valores da cultura contra um estado de coisas em que tudo concorria para, citando Sophia,  “tornar as almas mais pequenas”. É reconfortante lembrar-me de que estas pessoas existiam e estavam lá, prontas a ajudar os outros e arrostar com as consequências da sua incontestável dignidade.

Sobre a admiração, um enorme reconhecimento, porque elas souberam, sabe Deus com que dificuldade, conquistar um mínimo de espaço, sempre ameaçado, em que se debatiam conceitos, davam a conhecer outros legados e intervenções extra muros, e se testavam, não raro de forma críptica, quase esotérica, teorias e doutrinas. Na lembrança dessa magnífica contribuição para uma formação cívica democrática, são muito de somenos as dissenções, os sectarismos e as intrigas, que na ocasião pareciam importantes, mas que, passados os anos, são pequenos ápices, que se recordam já com um sorriso de bonomia. Pelo menos, é assim que eu revejo essas coisas do passado.

Pessoalmente, tenho estado poucas vezes com Alçada Baptista. Digo “pessoalmente” porque, de vez em quando, me vêm chegando notícias e apontamentos de amigos, ou de amigos de amigos comuns. Todas confirmam e reforçam a impressão de uma pessoa afável, tolerante, com uma grande capacidade de ouvir e de recordar. Ocorre-me a paciência com que ele nos recebia e aturava, em tempos, na Secretaria de Estado da Cultura, a mim e a outros jovens autores, convencidos, como é próprio dos novos escritores de sempre, de que a pólvora está para ser inventada. Tenho tido ocasião de presenciar a estima e a amizade com que gente das mais opostas formações o encara e lhe retribui a prudência do trato e a gentileza sempre cordata das palavras. “Um inimigo dá muito trabalho”, escreveu um dia. Criar inimigos seria, sem dúvida, trabalho redobrado para ele, porque tão ao invés do seu natural.

António Alçada Baptista é um grande e variado contador de histórias, e evocador de lembranças, sempre com uma graça suave, subtil, sábia, cheia de compreensão e afabilidade para com as nossas pobres fraquezas humanas, com que se solidariza e que mostra compartilhar.  Não sei se dá mais gosto ouvi-lo a contar, na rádio, as histórias e os apontamentos, que sabe sempre valorizar, ou lê-lo, numa frequentação quase sempre sorridente de tempos e personagens idas, ou saboreá-lo numa conversação informada e imaginativa que nos põe provisoriamente de bem com o género humano.

Contra todas as diferenças, desencontros e distâncias, prevalecem, pois, o meu respeito, a minha estima e a minha admiração.

Mário de Carvalho
30/10/2006