Os Projectos
Círculo de Poesia
Pedro Tamen

Numa noite de Maio ou Junho de 19581, depois de encerrado o debate de uma pequena reunião política clandestina onde acabávamos de nos conhecer pessoalmente, António Alçada Baptista puxou-me de parte e, ambos encostados aos estiradores do atelier de arquitectura onde a dita reunião se realizara, expôs-me o projecto da «Moraes»2, que acabava de comprar.  Foi então que me convidou para ir colaborar com ele nesse projecto - e mal podia eu imaginar a dimensão e as repercussões da aventura que juntos iríamos viver ao longo de quase uma década e meia.

Eu conhecia a livraria Moraes, de João de Araújo Moraes, Lda., por ser uma casa especializada em livros de Direito, situada na rua da Assunção, onde me abastecera algumas vezes ao longo do curso que terminara no ano anterior.  O António Alçada explicou-me nessa ocasião que constituíra uma sociedade que procedera à aquisição da livraria e que pretendia iniciar uma actividade editorial, para a qual precisava da minha colaboração, já que sabia da minha anterior experiência no jornal Encontro.

Falou-me então das duas colecções que tinha em mente, e para as quais fizera até as primeiras escolhas: um «Círculo do Humanismo Cristão», que se iniciaria com os Disparates do Mundo, de Chesterton, e um «Círculo de Poesia», que abriria com um livro do seu amigo Jorge de Sena3.  E logo, a propósito desta última colecção, me convidou também para publicar lá um segundo livro que tivesse inédito, já que sabia da publicação, dois anos antes, do primeiro, que o mesmo Sena lhe elogiara.
Eu estava cumprindo o meu primeiro serviço militar e era então aspirante, colocado na Repartição de Justiça do Ministério do Exército, onde trabalhava das 13 às 17 horas.  Como pretendia aproveitar as manhãs para o estágio de advocacia, aceitei nessa mesma noite começar a trabalhar na produção editorial da Moraes, depois do Verão, nos fins de dia que sobravam das obrigações militares.

E assim, a partir de Outubro desse ano de 1958, às cinco da tarde, saía do Ministério do Exército no Terreiro do Paço e caminhava até à Rua dos Douradores, onde, num terceiro andar penumbroso e poeirento, se situava o armazém da antiga João de Araújo Moraes.  Nesse enorme espaço, no meio dos caixotes e das pilhas de livros que o atravancavam, havia uma secretária, um telefone e, creio eu, uma máquina de escrever.  Foi lá que, afanosamente, começou a produção editorial dos nossos dois primeiros livros: Disparates do Mundo, de G. K. Chesterton (traduzido por José Blanc de Portugal) e Fidelidade, de Jorge de Sena.  A esses dois títulos juntou-se O Sangue, a Água e o Vinho, o segundo livro que eu publicava, que iria sair ao mesmo tempo.

*

Não tenho a certeza, mas creio que o António Alçada já tinha pedido ao meu amigo, e dele, José Escada o lay-out das capas do futuro Círculo de Poesia.  Lembro-me, isso sim, de discutir com o Escada o tipo e qualidade da cartolina a usar, na qual seria colada a «etiqueta» com o belíssimo desenho do «sol» que se tornaria clássico.  As dificuldades relacionavam-se com o facto de a cartolina escolhida ser importada (e por isso mais cara e nem sempre existente em stock), mas também com a sobrecapa de plástico transparente4, que encarecia substancialmente os livros devido aos custos do material e da dobragem.  Mas tais dificuldades foram rapidamente ultrapassadas, rendidos que ficámos todos – o António, o Jorge de Sena e eu – à beleza indiscutível daquele projecto gráfico.
Seja como for, num período de tempo incrivelmente curto, «fabricaram-se» as três primeiras edições da Moraes, a tempo de aparecerem nas livrarias antes do Natal.  Entre esses três livros estavam os dois primeiros títulos do Círculo de Poesia - os já citados Fidelidade, de Jorge de Sena, e o meu O Sangue, a Água e o Vinho.

*

Habituados como todos estávamos à extrema precariedade das colecções de poesia em Portugal, de modo algum podíamos prever que aquela que iniciávamos iria durar tanto tempo e acompanhar, com impressionante regularidade e persistência, todo um riquíssimo e vasto período da evolução da Poesia portuguesa.
Quando, em 1977, Nelson de Matos, que me sucedera na direcção da Moraes, me convidou para organizar uma antologia da colecção, escrevi no prefácio que lhe antepus que «uma antologia do que o "Círculo" publicou [é], ao mesmo tempo, ainda que de forma necessariamente grosseira, uma antologia da poesia portuguesa publicada em Portugal» ao longo daqueles vinte anos5.  Pese embora a moderação do inciso «ainda que de forma necessariamente grosseira», eu não seria hoje tão afirmativo, consciente que estou cada vez mais das lacunas importantes que o catálogo da colecção apresenta se comparado com o catálogo dos poetas activos durante aquele período.  Basta pensar na ausência (grave) de nomes como os de Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Mário Cesariny de Vasconcelos e Herberto Hélder, por exemplo, e dos poetas da geração que se convencionou chamar da «Poesia-61».

Porém, essas ausências, posso hoje afirmá-lo com toda a tranquilidade, não ficaram a dever-se a qualquer espírito de discriminação ou erro de avaliação.  Houve certamente, num caso ou noutro6, incompatibilidades pessoais - mas o que em geral aconteceu resume-se a «puras contingências de uma história vivida dia-a-dia, que não se compadece com a serenidade a posteriori de quem julga e escolhe com todo o panorama diante dos olhos»7.

*

Uma ideia aproximada do tipo de contingências a que me refiro deve procurar-se no modo como a colecção foi sendo escolhida, como ela se foi fazendo.  Olhando para o catálogo e rememorando o processo que levou à inclusão de certos autores (e autores muito diversos – de João Maia a E. M. de Melo e Castro e Maria Alberta Menéres, de Vitorino Nemésio a Cristovam Pavia), verifico sem margem para dúvidas que a existência de relações pessoais, quer do António Alçada Baptista, quer minhas, desempenhou em muitos casos um papel determinante.  Noutros casos, foram os próprios poetas já publicados que vieram a indicar outros8.

E refira-se que, em boa verdade, as Antologias que a colecção publicou – tanto a da «Novíssima Poesia Portuguesa», de E. M. de Melo e Castro e Maria Alberta Menéres (que teve três edições!) como a da «Poesia da Presença», de Adolfo Casais Monteiro – colmataram em boa parte as lacunas que as ditas contingências ocasionaram, repondo até certo ponto alguma verdade histórica onde ela tivesse faltado.

*

À distância que os anos nos proporcionam, o Círculo de Poesia, e maugrado as inúmeras e graves lacunas a que me referi, constitui indiscutivelmente um caso raro, para não dizer único, no panorama da edição de Poesia em Portugal.  Antes de mais nada, pela sua longevidade e pela regularidade da sua publicação.  Mas, sobretudo, pelo número e qualidade dos seus autores.

O ter reunido no seu catálogo nomes centrais e indiscutíveis da história da Poesia de língua portuguesa da segunda metade do século XX, como (cito a título de exemplo) Jorge de Sena, Murilo Mendes, Vitorino Nemésio, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Alexandre O'Neill, é sem dúvida motivo de orgulho - e não apenas por ter conseguido reuni-los quando eles eram já então figuras consagradas.  Porém, uma vez colocados numa perspectiva histórica, outro não menor título de glória terá sido acaso o ter apostado em valores então nascentes e que nos dias de hoje são comummente reconhecidos como fundamentais, e porventura tanto como esses: casos de António Ramos Rosa ou de Ruy Belo, por exemplo.

E, se é certo que, como já fiz notar, houve gerações ou grupos de poetas que chegaram à poesia no tempo histórico de vida da colecção e que nela não tiveram lugar, também é verdade que, em contrapartida, vários poetas importantes de tempos tão diferentes como o final da década de 50 e o princípio da de 70 alcançaram a primeira publicação em livro ou o primeiro editor «institucional» e prestigioso no Círculo de Poesia: pense-se em Fernando Echevarria ou João Rui de Sousa, por um lado e, por outro, em João Miguel Fernandes Jorge ou Joaquim Manuel Magalhães.  E foi também nesta colecção recheada de nomes sonantes que surgiram desconhecidos que constituíam promessas indiscutíveis mas cujos caminhos poéticos, por motivos bem conhecidos nalguns casos, e obscuros noutros, não tiveram continuidade: no «Círculo» foram publicados os livros solitários de Cristovam Pavia, de José Cutileiro, de Wilson Rocha.  Acrescente-se ainda, para terminar este breve panorama, que foi o Círculo de Poesia que «reabilitou» poetas esquecidos como José Blanc de Portugal ou Fernando Lemos e que deu voz a autores conotados com movimentos poéticos aparentemente distantes do seu espírito dominante, como os experimentalistas Salette Tavares ou E.M. de Melo e Castro.

*

Desde o princípio ficou decidido entre nós que a colecção procuraria manter um ritmo de quatro títulos por ano – dois a publicar na Primavera e dois no Outono.  Este ritmo foi na maioria dos anos, e logo no ano seguinte de 1959, excedido, às vezes largamente, embora haja a notar uma «crise» nos anos de 1965-69, que, como já afirmei noutro lugar, correspondem a tempos difíceis para a própria editora, nos quais se ensaiaram novas direcções em que pouco participei pessoalmente, já que estive então, primeiro, parcialmente tomado por outras opções profissionais e, depois, total e forçadamente afastado por uma mobilização para a guerra colonial em Moçambique.

Mas, em contrapartida, os anos de 1972-74, por exemplo, foram extremamente produtivos para o Círculo de Poesia, que publicou nesses três anos 24 edições – portanto com uma média anual dupla da que fora calculada para toda a vida da colecção.

Feitas as contas até ao ano de 1975 (o último em que participei activamente na vida da empresa e, em especial, da colecção), o Círculo de Poesia publicou ao todo 70 livros novos, alguns dos quais reeditados uma e mais vezes, perfazendo até essa data a bonita soma de 75 edições de 36 autores.  Tudo somado ou, melhor, tudo repartido, obtemos estatisticamente, para esses 16 anos e meio, uma média superior aos 4 livros novos por ano que planeáramos desde o início.

Note-se ainda que dos 36 autores que, com obras próprias, figuraram na colecção, 7 são brasileiros.  Além dos já citados Armindo Trevisan e Carlos Nejar, e do desconhecido mas muito interessante Wilson Rocha, o «Círculo» publicou Odylo Costa, Filho, José Santiago Naud, Thiago de Mello e o poeta verdadeiramente central na moderna poesia brasileira que foi Murilo Mendes.  E a lista poderia acrescentar-se com os nomes de Fernando Lemos e de Fernando Ferreira de Loanda9, se os considerássemos brasileiros por se tratar de portugueses de nascimento há muito radicados no Brasil.

*

Gostaria de terminar com uma precisão, ou um esclarecimento, que reputo de muito importante para que esta (pequena) história não desrespeite a verdade.
Por diversas vezes fui publicamente apresentado, em ocasiões em que seria deslocado ou incómodo desmentir o apresentador, como tendo sido o responsável, o orientador, em suma, o director do Círculo de Poesia.  Ora, a verdade é bem diferente.  Como se deduz do que já atrás explicitamente contei, António Alçada Baptista não foi apenas o inspirador do Círculo de Poesia; depois de ter sido seu exclusivo programador nos primeiros meses10, passou a partilhar comigo, de um modo assíduo e atento, ainda que com algumas intermitências pelo meio, a responsabilidade das escolhas.  Até ao Verão de 1971, isto é, até à data em que se lavrou a escritura de constituição da Moraes como sociedade anónima e em que declinou o convite que então lhe foi feito de permanecer na empresa, nunca António Alçada Baptista, pelo meio das procelosas dificuldades – financeiras e outras – que foi ultrapassando, deixou de ser a constante e genuína alma da Moraes e, portanto (é mais que justo proclamá-lo nesta ocasião), daquele «Círculo de Poesia» de que me falou logo naquela noite de Maio ou Junho de 1958.

Março de 2006
Pedro Tamen


1  Portanto, ou em plena campanha eleitoral de Humberto Delgado ou logo a seguir às eleições, que se realizaram a 8 de Junho.

2  Adopto desde já a grafia «Moraes» (com e), apesar de tal grafia, que era a tradicional da firma anterior, só ter sido restaurada em 1971, por ocasião da constituição da sociedade anónima.

3  O qual, aliás, estivera presente naquela mesma reunião que acabava de terminar.

4  Da qual passou a prescindir-se numa fase mais adiantada da colecção.

5  20 Anos da Colecção Círculo de Poesia, 20 Anos de Poesia Portuguesa, org., pref. e notas de Pedro Tamen, Moraes, Círculo de Poesia, 1977, p. 11.

6  Apenas me lembro de um – o de Mário Cesariny, que não perdeu ocasiões de exprimir a sua activa detestação do que a Moraes significava.

7  20 Anos..., op. cit., p. 13.

8  Recordo-me, por exemplo, de que foi António Ramos Rosa que me pôs na pista dos poetas brasileiros Carlos Nejar e Armindo Trevisan.

9  Fernando Ferreira de Loanda organizou para o «Círculo» em 1967 uma Antologia da Nova Poesia Brasileira que constituiu o que já considerei ter sido o maior dissabor e desastre de toda a história da colecção.  Com efeito, por deficiência de informação e do serviço prestado pelo intermediário entre Autor e Editor, o livro acabou por sair «a seco», sem quaisquer notas ou prefácios, sem sombra de aparato crítico.  Foi rapidamente retirado do mercado a pedido do Autor.

10  Note-se que, de todos os títulos publicados pelo «Círculo» até ao fim de 1959, apenas os 35 Poemas de Cristovam Pavia não foram «angariados» por António Alçada Baptista.